De olho nos dados #9: eleições municipais (parte 2)
Dando sequência às dicas para cobertura das eleições, hoje vou falar sobre ferramentas que podem te ajudar a cavar pautas e a se preparar para entrevistas com candidatos. O ponto de partida é o Manual GPI 2020, que apresenta textos sobre políticas públicas, transparência e legislação eleitoral. Desenvolvido pelo Projor e pelo Insper, o guia está na sua segunda edição e faz parte do projeto Grande Pequena Imprensa (GPI), idealizado pelo jornalista Alberto Dines.
No site do manual também é possível acessar a plataforma Raio-X dos Municípios, que reúne dados sobre educação, saúde, habitação, meio ambiente, mobilidade, segurança e orçamento de cada cidade do Brasil. Os indicadores são de fontes como Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), IBGE e Tesouro Nacional. A partir daí, podemos fazer análises e comparações entre diferentes municípios.
#PraCegoVer: print da página inicial do Raio-X dos Municípios, onde se lê: “Que tal descobrir pautas analisando os dados da sua cidade?”.
Eleição e pandemia
Um dos principais temas desta eleição é a covid-19. O portal de transparência da sua cidade é uma importante fonte para analisar contratos e compras que a prefeitura fez durante a crise sanitária. Além disso, vale a pena dar uma olhada no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Neste site, clique em “Consultas”, depois em “Estabelecimentos” e “Identificação”. Selecione o estado, o município, gestão (municipal) e clique em “pesquisar”. Assim, você terá uma planilha com todos os hospitais públicos e privados que prestam serviço para a prefeitura.
Na coluna “Detalhes” da planilha, tem um ícone que leva para a ficha cadastral do estabelecimento. Lá você encontra nomes de profissionais que trabalham no hospital. É um recurso interessante para buscar fontes que eventualmente podem revelar problemas que o sistema de saúde tem enfrentado. No CNES também é possível baixar uma base de dados com a qual você poderá analisar e comparar, por exemplo, os números de leitos e equipamentos disponíveis em diferentes hospitais.
Ouvidorias e e-SIC
Quer saber os problemas que os moradores da sua cidade têm enfrentado? Por meio do Sistema de Informações ao Cidadão municipal (e-SIC), você pode fazer pedidos de Lei de Acesso à Informação solicitando as reclamações e as denúncias que a ouvidoria do município recebeu este ano, por exemplo. Para facilitar a análise dos dados, peça o arquivo em CSV. “Solicito que as informações sejam fornecidas em formato aberto (planilha em .CSV), nos termos do art. 8º, §3º, III da Lei Federal 12.527/11 e art. 24, V da Lei Federal 12.965/14. Importante frisar que arquivos em formato .PDF NÃO são abertos (vide o item 6.2 em http://dados.gov.br/pagina/cartilha-publicacao-dados-abertos)”.
Candidatos à reeleição
No caso de prefeitos que concorrem à reeleição, é importante ver como eles gastaram (ou deixaram de gastar) o dinheiro público nos últimos quatro anos. Para isso, é fundamental ter noções básicas sobre leis orçamentárias e saber como acompanhar as receitas e as despesas do município.
O curso “No rastro digital do dinheiro público: Como fiscalizar gastos da União, Estados e Municípios”, promovido pelo Knight Center, é um ótimo caminho para se familiarizar com conceitos de orçamento e descobrir bases de dados que vão te ajudar na cobertura do tema.
A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece as normas que regulamentam as finanças públicas. Entre outras questões, a legislação determina a periodicidade que o poder público deve apresentar o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) e o Relatório de Gestão Fiscal (RGF). Você pode encontrar esses documentos no portal de transparência da sua cidade.
No site da prefeitura de Belo Horizonte, por exemplo, vou clicar em RREO e buscar por “Demonstrativo da Execução das Despesas por Função e Subfunção” de 2019. Cada um dos seis arquivos corresponde a um bimestre do ano passado. Com eles é possível ver qual era o orçamento previsto para cada área da cidade e como o dinheiro foi realmente gasto.
Siga o dinheiro
Por fim, gostaria de indicar a leitura da melhor reportagem que li esta semana. Publicada no Brasil de Fato, a matéria assinada por Igor Carvalho mostra que a prefeitura de São Paulo assinou um contrato para lá de suspeito com uma produtora de vídeo. O serviço foi contratado às vésperas da eleição e custou a “bagatela” de R$ 10,2 milhões. Há fortes indícios de corrupção.
Gostaria de propor um exercício de “engenharia reversa” para chegarmos nas principais informações publicadas na reportagem. No Portal da Transparência da Prefeitura de São Paulo, vamos clicar em “Contratos, Convênios e Parcerias”. No campo “Busca por”, selecionaremos “valor”. Filtrarei entre R$ 1 milhão e R$ 1 bilhão. Escolherei o ano de 2020, clicarei na lupa de pesquisa e depois no ícone CSV. Na página seguinte, selecionarei todos os campos disponíveis do relatório. Finalmente, exportar CSV.
No Google Sheets, o passo a passo é o seguinte: arquivo, importar, upload e selecionar o CSV que acabamos de baixar. Em “Tipo de separador”, selecionaremos “personalizado” e colocaremos um ponto e vírgula (;) na caixa ao lado. Em “Converter texto em números, datas e fórmulas”, selecionaremos “Não”. Depois, é só clicar em importar.
Duas observações sobre o que fizemos acima: embora CSV signifique comma-separated values – ou seja, valores separados por vírgula –, é comum baixarmos arquivos separados por ponto e vírgula no Brasil. Então, fica a dica: importou uma planilha e ela está toda bagunçada, sem que os dados estejam agrupados por colunas? Então, importe novamente o arquivo no Google Sheets – ou na planilha de sua preferência – e mude o tipo de separador para , ou ;. O outro ponto é o seguinte: se convertêssemos “texto em números, datas e fórmulas”, correríamos o risco de o editor de planilhas cortar algarismos de CNPJs, por exemplo, caso eles comecem com zero. Tipo, 01.025.974/0002-73 viraria 1.025.974/0002-73.
Agora é preciso formatar os valores (coluna E) em números. Filtrarei os valores em ordem decrescente. De cara, vemos que a prefeitura tem um contrato de R$ 1 bilhão (com b de bananada) com a Metalplay, para fornecimento de cadeiras de roda. Eita! Mas, calma lá, devemos tratar os dados com o mesmo ceticismo que tratamos outras fontes. Será que é R$ 1 bilhão mesmo? Pegaremos o número do contrato (003/2020/SMS-1/CONTR) e pesquisaremos por ele aqui. Na verdade, o serviço foi contratado por R$ 1 milhão. Ou seja, tem alguns zeros a mais naquele campo da nossa planilha.
Agora, farei um filtro pelo órgão contratante. Selecionarei apenas o gabinete do prefeito Bruno Covas, candidato à reeleição pelo PSDB. Assim, aparecem apenas quatro contratos. O mais caro deles é o que envolve a Yuyu Produções, a empresa sobre a qual o repórter Igor Carvalho escreveu o texto. Mas será que, assim como no caso da Metalplay, esse valor está errado? Baixarei o contrato (002/2020-REF/SECOM) para checá-lo.
Realmente o contrato foi firmado com a produtora no valor de R$ 10,2 milhões. Portanto, esse campo da nossa planilha está correto. O documento traz uma série de outras informações úteis para a apuração – quais são as obrigações da contratada, o nome da dona da empresa, seu endereço e telefone comercial. Com o CNPJ da produtora, também podemos consultar o Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral na Receita Federal, que apresenta outro número de telefone.
Pelo Google Maps, podemos pesquisar pelo endereço indicado no contrato (e na Receita). Não há placa que indique que ali funciona uma empresa. No entanto, é possível que o local abrigue a produtora mesmo que sem identificação. Então, nada como gastar a sola do sapato para ir até lá. Foi justamente isso que o repórter Igor Carvalho fez. E fez com maestria.
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E se quiser compartilhar dicas de ferramentas ou me contar bastidores do seu trabalho, por favor, me dá um toque. Vai ser um prazer trocar ideia. Assim, a gente espalha a palavra pra mais gente. Quer ajuda numa apuração? Também pode contar comigo.
Hoje, fico por aqui. Mas estou sempre de olho nos dados!
Um abraço e até a próxima.